domingo, 8 de abril de 2007

sem ônibus, a sangue frio




na foto: Perry Smith e Dick Hickock, mortos pelo assassinato de quatro membros da família Clutter

Desde que tomei vergonha na cara e resolvi aprender a dirigir tenho lido muito menos. Perdi a minha leitura favorita: aquela no sacolejo do ônibus cheio na ida para o trabalho ou na luz fluorescente do mesmo ônibus na volta para casa. Não consigo me habituar a leitura mais tranquila, sem sapatos, na poltrona macia e vou colecionando uma série de livros lidos pela metade...


E que saudade de devorar Saramago ou Joseph Mitchel em viagens de carro pelas esburacadas estradas da Bahia. Que saudade da minha cara de espanto e reverência ao conhecer Hemingway no banquinho mais alto do Cabula VI... E as gargalhadas que Bukowski me arrancava no Praça da Sé ou a maneira como eu ficava atordoada com Ana Cristina Cézar, Clarice Lispector e Hilda Hilst nos Sussuaranas da vida....

Aí, há pouco menos de um mês, eu começo a ler A Sangue Frio, de Capote. Num estalo, senti prazer naquilo, mesmo sabendo que de manhã, quando estivesse doida para recomeçar a história, eu estaria guiando. Dirigir é ficar preguiçoso, caros amigos. Tudo fica longe, eu bem poderia sair com o meu livrinho debaixo do braço e enfrentar todas as ladeiras que separam a minha casa do ponto de ônibus para manter o prazer indescritível daquela leitura.... Mas não.


No auge da minha burguesia e preguiça eu coloco o livro na bolsa, entro no carro, dou a partida, escuto as notícias pelo rádio e tento manter a história em mim. No início houve uma empolgação típica. A Sangue Frio me tomou de súbito, eu cheguei quase no meio do livro em um dia...

Até que começaram as aulas de jornalismo literário e os textos que Colling passava somados ao meu trabalho e falta de disciplina fizeram com que eu arquivasse a história do homenzinho de voz molenga e caráter duvidoso. Detesto quando abandono um livro pela metade (e devo confessar que tenho feito isso muito mais do que gostaria).... Fica tudo perdido na hora de voltar, a memória embaralhada...

Então ontem, depois de não sei quantos dias longe do assassinato brutal nos confins rurais norte-americanos, eu pego o livro novamente e que surpresa deliciosa. Capote tem uma narrativa tão fluida e cativante que é praticamente instantânea a maneira como tudo volta, aliás, como tudo parece nunca ter saído do lugar.

Estou encantada com esse ping pong entre o mundo dos Clutter e o mundo de Perry e Dick. Fico ansiosa para saber que horas essas duas histórias vão se encontrar. Aqui mesmo na internet, os artigos que fazem referência ao texto de Capote são como ele gostaria: cercados de toda a mitologia que o escritor fez questão de cultivar, para emular ainda mais a sua imagem excêntrica e genial.

"Texto imaculadamente factual", um homem que conseguiu reunir tantos detalhes gabando-se de jamais ter usado o gravador e, ao mesmo tempo, um homem que conseguiu juntar mais de oito mil páginas em recortes de jonal em material sobre aquele crime, um homem que reintrevistou tantas vezes as mesmas pessoas e que, cuidadosamente construiu sua trama durante seis anos.

Tenho quase certeza de que A Sangue Frio vai me fazer entender o quanto é preciso desligar a televisão, o quanto é preciso tirar a tv do quarto e deixar que ela fique lá longe, na sala. Para que a cama fique ainda mais confortável, a madrugada ainda maior e mais assustadora e a vista não canse antes que hoje ainda eu consiga avançar a passos rápidos, como numa fuga, pelas páginas de sua história. [carlab]

2 comentários:

Yara Vasku disse...

Beleza de blog, Carlinha. Também estou lendo este livro. Se quiser, depois, podemos inaugurar nossos encontros de estudo a partir desse livro. Força, amiga!

Patricia Moura disse...

Carla, tenho quase certeza que Capote não dirigia...Era a sorte dele! E a nossa, por tabela.